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1984
Sente-se a perplexidade perante a pungente radiografia da escrita que é este romance de Fernando Namora. O RIO TRISTE, sabemo-lo, não é apenas o rio Tejo, mas sim o correr da vida, uma metáfora temporal presente já noutras obras do autor; porém, de que se trata, afinal? A primeira ideia é a de que nos encontramos em presença do chamado romance total, que toda a gente se refere e ninguém consegue definir, um romance que nos fala de tudo, desde o amor, a morte, os problemas políticos da guerra colonial, a emigração, da resistência, até aos mais íntimos meandros da criação literária, ultrapassando, no entanto, os temas para nos falar deles de todas as maneiras, indo da rede épica mais clássica – o enigma policial – à pura poesia, como nas cartas de Marta e nas páginas do diário de Cecília.
O que, todavia, mais impressiona e surpreende nesta obra «quente» é o processo de dissolução da escrita e da própria narrativa, que se cumpre insensível mas implacavelmente ao longo do livro. Porque O RIO TRISTE não é só um romance da vida portuguesa num determinado período histórico, ou o romance existencial de um artista chegado à maturidade, nem, igualmente, apenas o romance de «como se faz um romance» - ele é, ainda e também, um patético processo a cujo desenrolar vamos assistindo; o acto de o romance se destruir a si mesmo. O autor-personagem confunde-se, até se identificar, por um lado, com o herói propriamente dito (Rodrigo) e, por outro, com o próprio escritor. O narrador é as vezes eu, outras vezes ele, impondo movimentos de avanço e regresso, de afastamento e aproximação relativamente ao núcleo ficcional.
Do ponto de vista do eixo temporal, O RIO TRISTE é sumamente interessante, por nos oferecer, além da intriga policiária «situada» de um modo muito precioso («No dia 14 de Novembro de 1965», etc.) também o passado (como as cartas de Marta) e o futuro («Estou a ver-me. Daqui a não sei quantos anos»): com efeito, neste romance já não existe tempo exterior, tempo referencial, tão-só o tempo da própria escrita, e este tempo não pode ser senão o presente, ou antes, o presente contínuo.
Muitos elementos se salientam nesta obra como testemunhadores da sua singularidade, originalidade e força. No entanto, alguns deles já existiam nos romances precedentes, embora apenas esboçados, como por exemplo a conivência com o leitor (RESPOSTA A MATILDE e DOMINGO À TARDE). E esta continuidade prova que em Fernando Namora, como em todo o verdadeiro artista, há um discurso único e inconfundível; o que muda são os cenários e os acessórios, pelos quais esses discurso de diversifica. Todavia, neste livro, para além das proezas de estilo e de estrutura, há uma coisa nova; a predominância que nele tem a relação amorosa, a ponto de o podermos considerar um romance de amor. Em nenhum outro livro se encontra este hino à mulher entoado pelos casais que atravessam as águas d’O RIO TRISTE (Rodrigo-Teresa, Henrique-Beatriz, Faria Gomes-Bia, André-Dorita), compondo, no seu conjunto, uma unidade bíblica.
E a hesitação persiste face a esta obra mestra: falar dela é tentar exprimir o que parece inexprimível.