Este livro está na lista de favoritos de 2 utilizadores.
«Akhmatova começou, entretanto e felizmente, a ser mais traduzida em português. Quanto a mim várias hipóteses acerca da sua obra se me foram colocando, além da imediata: a sujeição ao totalitarismo.
O sofrimento dos homens e das mulheres, portanto também dos poetas, que não se tornavam flor de regime, era cravado inexoravelmente na vontade de extermínio da dissidência, a qual podia ser simplesmente o ausentar-se das suas manifestações. Contudo, dentro deste regime de totalitarismo, não deveriam contar-se somente os quase impensáveis processos dos comunismos, dos fascismos ou dos nazis. Também se devem colocar os extermínios do indivíduo e do seu habitat que o anonimato capitalista — com os seus cada vez maiores e mais supostos direitos absolutos em nome do lucro, a sua leniência perante o socialmente violento, a permissibilidade da inquietação dos que trabalham na contingência de o poderem vir subitamente a não poder continuar a fazer e a sua indiferença face aos que não conseguem pagar o custo da sua dor — desencadearam.
O séc. XX, que foi o de Akhmatova, encontrou nela, na sua linguagem, um dos declaradores cimeiros da devastação. Esta palavra reúne todos os sistemas políticos (mas também todas as religiões que se arrogam o direito de proibir e assassinar interiormente) que por ela atingiram os seus auges de poder. De um modo ou de outro, todos — mesmo hipocritamente falando em nome do humano — dizimaram, desfiguraram, impediram o indivíduo que não abdicasse de ter o direito de não se deixar padronizar. Tal como abalaram, não se sabe até que ponto irremediavelmente, o mundo natural, olhado como um espaço digno de qualquer esmagamento.
A irónica dádiva do séc. XX, tão preocupado com curas científicas, foi a morte no alheamento, a todo aquele que não fosse o banal ou o assujeitado. A morte de cidadania, quando não a própria morte por provocação da impossibilidade real de sobrevivência.»
Da Nota Introdutória