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Um homem muito velho espera a morte numa cama de hospital. Membro de uma família tradicional, desfia, num monólogo dirigido a quem quiser ouvir, a história da sua linhagem, desde os antepassados portugueses que desembarcaram no Rio com a corte de Dom João VI ao avô maçom que lutou pelo fim da escravatura. Lalinho evoca com nostalgia o nascimento de berço, a família de bom nome, os chalés e os casarões, para assumir, com humor e amargura, que, entre as paredes de um quarto de hospital, as linhagens não tiram dores.
Longe dos tempos áureos do chalé de Copacabana, são muitas as figuras que viajam pela cabeça do ancião: o arrogante engenheiro francês Dubosc; a mãe do narrador, que, de tão reprimida e repressora, «toca» piano sem emitir qualquer som; a namorada do neto, com piercings e barriga à mostra. Mas a evocação mais forte é sempre a de Matilde, mulher de «riso contido» e «olhar em pingue-pongue», por quem se apaixonou de imediato e para quem deixou sempre as portas abertas, mesmo depois de esta desistir de vez daquela paixão mal vivida e mal compreendida.
Toldado pela morfina e interrompido pelos queixumes da doença, o discurso do centenário Lalinho é deliciosamente pleno de omissões e falsidades, dúvidas e mistérios. Vale-nos a ironia do autor, que permite ao leitor entrever as verdades e os não-ditos. Obra de um escritor em pleno controlo da arte narrativa, Leite derramado é uma saga familiar entrelaçada com a história do Brasil dos últimos dois séculos.