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Mas de que fome se trata? Aqui também temos duas perspectivas notórias: uma é a fome primária, estomacal, fisiológica, que corrói as vísceras de António Cordeiro, a fome de costeleta e de bife, que inclusive navega a bordo do mítico Carvalho Araújo que levou o protagonista — e várias gerações de açorianos — para Lisboa, onde ele desembarca "em Alcântara, sem tostão no bolso." Na Capital, a fome não dá tréguas, vitimizando-o "o cheiro da comida, o apelo da comida, a imagem da comida, a alucinação da comida", em que o ícone é uma saborosa costeleta entrevista num restaurante. Já na universidade, António Cordeiro "prolongava o jantar para além dos limites razoáveis. Mastigava cuidadosamente...", tudo isso para enganar a fome. Essa carência absoluta faz com que declare, a páginas tantas, "Sempre me foi a fome uma entidade familiar. Profissão: faminto — eis o que não consta nos arquivos deste planeta."
A outra fome é mais sofisticada, é fome metafórica, mas não menos dolorosa: é a constituída pela ausência de tudo o que dá dignidade e conforto à existência, é tudo aquilo que António Cordeiro não tem e que tanto deseja, embora não lhe seja perfeitamente claro o que isso seja.
[Luiz Antonio de Assis Brasil, em "Por Uma Costeleta", texto de abertura de A Fome]