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Início do livro:
Às vezes, carinho, consigo ver-te no mar. As ondas costumam ser pequeninas, quase imperceptíveis, e por isso só te mexes quando os barcos se aproximam. Alguns, de certeza, são apenas a minha imaginação a fazer ondular o teu cabelo caído pelo rosto, mas há muitos que passam por ti como se nem sequer existisses. Esses são bem reais e a velha Luzia dos Engreneiros, do alto da rocha onde pesca ao fim da tarde, não se cansa de os amaldiçoar.
- Deve ser porque lhe espantam os peixes.
- Ou então, amigo, é mesmo por ruindade.
Avelha Luzia dos Engreneiros já não tem nariz. E tudo porque um dia, ainda em rapariga, lhe explodiu o caldeirão dos preparos enquanto estava a tomar-lhes o cheiro. Só que isso nunca lhe deu grandes aborrecimentos.
- Ela nem se foi abaixo, até porque não era criatura para isso, amezinhou-se sozinha e ao fim de dois ou três meses apareceu com um nariz novo. Claro que se tratava de um nariz dos de carnaval, daqueles com uns óculos pretos por cima, mas como já uma vez ouvi dizer, minha boa e apreciada amiga, não se pode ter tudo nesta vida.
- É capaz. O mais certo é nem na outra vida se conseguir ter tudo.
- Isso não se sabe bem, porque de lá, da outra vida, segundo por aí se diz, só voltam os fantasmas.
- Voltam os que voltam!
- Não, voltam todos. Os fantasmas voltam todos, por isso é que são fantasmas e têm aquelas particularidades absolutamente inegáveis, ainda que um pouco ambíguas, que depois os escritores aproveitam para os romances e que em alguns casos, mais cedo ou mais tarde, acabam nos ecrãs de cinema, ou pelo menos em séries de televisão. Se os cabrões não voltassem, está-se mesmo a ver, então é que não eram fantasmas.
-…
- Não sei se me fiz compreender?
- Claramente, senhor professor, claramente. E neste ponto deixo a conversa.(...)