Mais Marés que Marinheiros

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Mais Marés que Marinheiros
Autor(a)
Clara Pinto Correia
Editora
Relógio D'Água
Género Literário
Autores Portugueses
Romance
Sinopse

Assim, não é apenas pela sua brevidade, ou pela sua clareza quase fotográfica, que as histórias deste livro remetem para uma experiência de escrita e de leitura que se encontra tipificada na poesia de haikai. 

 "Esta era a primeira de uma série de histórias que eu ia começar a escrever, todas elas construídas como encla­ves pequeninos de ficções inconsequentes. Seriam umas ficções elegantes, minimais, daquelas cujo alcance pro­fundo nem todos conseguem abranger na primeira abor­dagem, e cujo domínio diz respeito às paragens mais re­cônditas e subjectivas que se escondem dentro da nossa alma — uma selecção discreta de fantasias minúsculas e sem destino, só para quem gosta de andar à escuta de ru­mores submersos. Tinha o assunto planeado com cuidado, e até com es­mero. Era uma ideia de que eu gostava deveras. E ia começar a tratá-la com imenso carinho. Foi nesse estado de espírito que me sentei ao compu­tador para colocar no edifício a sua primeira pedra. Era muito cedo e estava muito frio. Eu atravessara a neve e o gelo e as rajadas desvastadoras daquele vento que corta as pessoas à faca e lhes petrifica a pele para sempre. Suspirei de alívio ao entrar no edifício aqueci-do. Atirei com a porta atrás de mim. Enchi uma chávena de café. Esfreguei as mãos umas na outra. Disse para os colegas que iam a passar as coisas do costume que se di­zem em dias destes. Pendurei o casaco e ajeitei a cadei­ra. Lá fora a neve do chão levantava-se em turbilhões e voltava a cair. Da sala do fundo chegava o som de classic rock de um rádio que fica sempre ligado no mesmo posto. Tudo estava no seu lugar e eu ia começar a escrever a minha primeira pequena ficção sem consequência. Nessa altura veio alguém do andar de cima e pousou ao meu lado um fax que tinha acabado de chegar. Os faxes normalmente são para tratar de encomendas de reagentes, ou de expedientes de serviço com editoras, ou outras coisas assim. Ou então são para trocazinhas de brincadeiras entre pessoas que estão longe umas das ou­tras e enviam uns acenos de familiaridades antigas para iludir a distância. Os faxes pertencem ao mundo confor­tável que há do lado de dentro das janelas, e, por defini­ção, são bons. São, na sua própria essência, uma confir­mação de que tudo está no seu lugar; e uma garantia de que o mundo que vem aí é cada vez melhor na sua uni­versalidade electrónica. Olhei para o papel e sorri, porque a caligrafia era a de uma das minhas melhores amigas. Este fax não é nenhuma ficção. Recebi-o mesmo esta manhã, no aconchego do laboratório, depois de ter co­mido corn flakes a ouvir as primeiras notícias do mundo na CNN. E, palavra por palavra, dizia exactamente as­sim: «Clarinha, «Lembrei-me que fazias anos no sábado mas não tive coragem para te telefonar pois estou na maior angústia da minha vida. Soube que na quinta-feira passada assas­sinaram em Angola o meu irmão Jorge, a minha cunha­da e os seis filhos. Consta que foram barbaramente as­sassinados por elementos da UNITA. Também consta que o fizeram por ser branco e ser um empresário com ‘algum sucesso’. «O meu sofrimento é muito grande mas fico feliz por teres feito anos. Os meus parabéns. «Beijinhos». E agora estou aqui, na América, num mundo todo li­gado por faxes e a olhar para as pipetas e para as centri­fugadoras com o desespero dos impotentes. Desculpem. Há alturas em que não faz qualquer espécie de sentido escrevermos pequenas ficções sem consequência. Por­que o que nos chega em poucos segundos através do Atlântico é muito mais poderoso, e muito mais cruel, e muito mais insustentável do que a ficção. É uma peque­na realidade sem consequência, oito pessoas mortas num sítio onde as pessoas andam todas a matar-se umas às outras por razão nenhuma e sem finalidade nenhuma. Ou por emaranhados de razões e finalidades tão complexos e amalgamados que se transformaram num nó górdio que já nem sequer se vê, o que vai tudo dar ao mesmo. As pessoas já nem sequer se matam por ideais ou coisas dessas assim. Matam-se porque estavam ali a jeito, e por acaso até tinham algum sucesso, e de qualquer maneira havemos de morrer todos, mais cedo ou mais tarde. Eu ando para aqui a injectar uns coelhos e a digitalizar umas imagens de fluorescência, e a ter umas alegrias e

Idioma
Português
Preço
4.00€
Estado do livro
Novo
Portes Incluídos
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Sandra-Guerreiro

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