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Porque foi assim: naquele ar frio de Inverno, com as nuvens a voarem baixo e com o vento a alta velocidade, eles desapareceram. Ou transformaram-se. Isso, sim, ou se transformaram em algo de impossível e incompreensível. Eles foram contas no chão, negras de tanta luz no seu início, baças de tão negras no final.
Os corpos a decomporem-se para dentro, portanto. A definharem. A morte, o desaparecimento, chamem-lhe apenas agonia e dor última de quem está a ser comido vivo pelo próprio universo. Os corpos foram inseridos dentro do seu ponto mais pequeno e brilhante e, por uma última e única vez, explosivos na perfeição de uma conta. Uma conta, sim. Daquelas que se colocam nos colares e nas pulseiras. Sim, uma esfera negra e baça, pequena e única, com um pequeno buraco no seu centro, pronta para que algo a trespassasse e unisse.
Ninguém saiu, diga-se. E eles todos desapareceram na sua conta. Ficou apenas, que eu tenha conseguido ver por estarem suficientemente perto da minha visão, a mãe, a filha, os recém-casados separados por uns trinta centímetros e o rapaz, mais perto, como se estendesse a mão que já não tinha a quem queria salvar.
A mais pura verdade aquela a que eu assisti deste segundo andar e que me fez pasmar, vomitar, maravilhar, imaginar o horror mais vezes e mais vezes e mais vezes. E por fim aceitar, perceber, sorrir, querer entender. As pessoas que estavam lá fora, pelo menos as do meu ângulo de visão - que se estendia desde o centro comercial, adro e avenida abaixo, até ao rio - desapareceram em contas. E eu cá fiquei protegido não sabia ainda porquê, com os gritos histéricos daqueles que tiveram a sorte de, no preciso momento em que o vento trouxe com mais força as nuvens baixas, se encontrarem às compras ou em descanso dentro do centro comercial.
Mas mais ainda. Porque éramos pasmo e mais pasmo quando vimos, todos e com os olhos que um dia também serão outra coisa, um homem. Vinha caminhando avenida acima. E, silente e mais pasmado do que nós, coleccionando cada conta que encontrava na mão, acariciando-a como se se tratasse do mais precioso tesouro, incompreensivelmente calmo, incompreensivelmente sem compreender.
Pegou nas contas dos recém-casados, eu vi. Pegou depois nos corpos feitos esfera da mãe e da filha. Traria já uma mão cheia de contas quando levantou a cabeça, me fitou olhos nos olhos para dentro do centro comercial. Deu mais dois passos, ajoelhou uma perna, pegou na conta do rapaz, colocou todo o conjunto em concha nas duas mãos e disse bem alto para que ouvíssemos:
Posso entrar?
Esse homem tinha o dom.