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LIVRO:
-O caçador de angústias, de Ricardo Bensaúde.
Edição Sociedade de Expansão Cultural, 1966.
Prefácio de Domingos Monteiro.
Tem 143 páginas.
Ricardo Bensaúde, o autor deste "Caçador de Angústias", é filho de Maurício Bensaúde, que foi um dos raros vultos do Brasil de ópera a nível mundial, e familiar de Vasco Bensaúde, outro distinto Açoriano, que encontro elogiado no jornal “Caça”, mensário publicado nos Açores, em 1936 e 1937, como caçador e benemérito, e também no exemplar que possuo do “Estudo sobre o Perdigueiro Português”, de 1937, da autoria de Leopoldo Machado Carmona, onde se pode ler na dedicatória, manuscrita e assinada pelo autor, em 19/VII/1937,: “Para o meu Exmo Amigo Senhor Vasco Bensaúde, ilustre canicultor e grande impulsionador das Exp. Can. Port. (...)”
Ricardo Bensaúde distinguiu-se na pintura e deixou-nos este livro, onde nos relata os seus episódios de caça na Europa e no Brasil.
Dele transcrevo "Caçadas nos Pirinéus":
"Era ainda noite e um vento áspero enregelava-me as costas. Para me aquecer, desmontei e segui a pé pela encosta pedregosa.
Durante a subida, agarrado ao rabo do cavalo, ofegando e tropeçando nas pedras, ia com a imaginação antevendo as peripécias da caça que me esperavam lá em cima.
Ouvia-se apenas o resfolegar do cavalo e o ruído dos seus cascos na rocha.
De baixo vinha o canto de um galo e, de muito longe, um coro suavíssimo, de outros galos que respondiam.
Mais cedo do que esperava, a encosta tornou-se impraticável para o cavalo e tive que o mandar de volta para Troumouse.
Fiquei só com o contrabandista.
Entretanto, lá em cima, os cumes dos montes avermelhavam-se com o primeiro raio de sol. Nós, na sombra e no frio, continuávamos a subir pelos desfiladeiros intermináveis para atingir a zona de caça, que começa a partir dos dois mil e quinhentos metros de altitude.
Chegados por fim a um desfiladeiro coberto de neve, combinámos que cada um de nós explorasse uma vertente, para depois, mais acima, nos juntarmos de novo. Separámo-nos e prossegui sozinho.
Avançava com cautela, explorando com a vista as rochas distantes e, um por um, todos os recantos, com aquela expectativa ansiosa que dava um encanto quase poético às caçadas da minha juventude. Durante horas, bati o terreno áspero inutilmente.
Ao entrar numa zona sombria, de repente estaquei e agucei a vista: não havia dúvidas, aquele vulto ali deitado que via entre duas rochas, mais abaixo, era o de uma camurça.
Só quem caçou esse esplêndido animal sabe quanto é emocionante o seu encontro, depois de tantas fadigas e de tanta ansiedade.
Ofegante como estava, esperei alguns momentos para acalmar as batidelas do coração, antes de atirar. Depois apontei a arma, mas logo desisti, considerando que o alvo se apresentava mal, tornando o tiro problemático. Não podia falhar aquela ocasião, e decidi aproximar-me. Comecei a descer, com extrema prudência, quase rastejando, quando, vindo de cima, ouvi um silvo. No alto de um paredão, a uma centena de metros de mim, recortada contra o céu, magnífica, uma camurça olhava-me. Parecia compreender que estava fora do alcance prático da minha carabina. A outra camurça, por baixo, alertada pelo silvo, já estava em fuga, num ruído de pedras rolando.
Ficámos, o animal e eu, longos instantes a contemplar-nos, ele, seguro por estar distante e da parte de cima, eu, com a minha arma de guerra, uma Lebel, sem óculo de alcance, impotente para atingi-lo àquela distância. A camurça lançou alguns silvos ainda e desapareceu. A desilusão foi tão viva que me acompanhou, cáustica, pelo dia fora.
Procurei o meu companheiro, tentei desabafar com ele, mas em vão. O melhor era seguir em busca de melhor sorte, e lá fomos em direcção ao cimo da montanha para alcançar a outra vertente.
O topo dessa alta serra, de cujo nome me não recordo, mas que se acha perto do Mont Perdu, nos Pirinéus, era alongado e estreito como uma lâmina virada para o céu, com um gume da espessura de dois metros, talvez, e o comprimento de cinquenta ou mais. Para lá chegar subimos um canal de pedras soltas. O meu companheiro disse-me então que exploraria a outra vertente, voltaria para me comunicar o resultado e combinar o que faríamos depois.
Vi o contrabandista desaparecer, silencioso, por detrás das rochas. De novo fiquei sozinho.
Naquela nesga de terra, limitada por paredes a pique, tive uma sensação de vertigem. Sentei-me e depois acabei por estender-me, de tão cansado que estava. Com o sol na cara, naquele silêncio empolgante, fiquei a olhar as nuvens brancas que passavam por cima. Seguindo-as com os olhos relembrava o episódio da camurça perdida, remoendo a minha desilusão.
Pouco a pouco, fui cerrando as pálpebras, vencido pelo sono... mas uma sombra passou de repente. Abri os olhos e vi um vulto escuro por cima de mim, tão próximo que se tivesse alongado o braço poderia toca-lo: uma águia! Vi as garras estendidas e até as escamas das patas, o vibrar das asas e os olhos cruéis pregados nos meus... Tudo num relance, porque, com o meu estremecimento, o vulto desviou-se e mergulhou no espaço!"
(pp. 31-36)
Retirado do Blogue Ribeira Seca.
*EXEMPLAR EM EXCELENTE ESTADO.