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Com 428 págs
MUITO ALÉM DE UMA HISTÓRIA DO DIABO...
Ana Luiza Sanches CERQUEIRA
Apesar do título, Uma história do diabo – séculos XII-XX, de Robert Muchembled, oferece muito mais do que apenas isso. Longe de percorrer somente a trajetória da crença em um dos grandes mitos da humanidade – a existência do diabo –, o autor apresenta esta trajetória ligada às modificações sociais, literárias, religiosas e culturais ocorridas na Europa desde o século XII até o início de nosso século XXI, marcado por uma “revitalização” de Belzebu. Conforme o próprio estudioso afirma, “para compreender o lugar que ele (o diabo) tem atualmente em nosso universo mental, em nosso imaginário, em que sentido as representações
introjetadas por um indivíduo influem em suas ações, precisávamos encontrar todas as suas pegadas” (2001, p. 341).
E é exatamente o que Muchembled faz de forma bastante abrangente, recusando-se a desprezar em seu estudo filmes, livros infantis, músicas ou quaisquer expressões culturais (muitas vezes classificadas como “menores” pelos críticos), considerando-as
fontes de informação tão válidas quanto os documentos “oficiais” visto que, para ele, “indício algum, por ínfimo que seja, se mostra portanto inútil para compreender como uma civilização se mantém agregada, evolui e perdura.” (2001, p. 18).
Consequentemente, os leitores encontrarão referências as mais variadas, desde textos literários canónicos, como Frankenstein, de Mary Shelley, e Drácula, de Bram Stoker, até a filmes como Carrie, a estranha, A hora do pesadelo e a polémica obra do
cineasta Stanley Kubrick, Laranja mecânica.
O livro limita-se ao estudo das manifestações do demónio no Ocidente, de meados da Idade Média à atualidade, pois não seria viável, de acordo com o autor (e todos hão de concordar com ele) tentar abarcar, em um único estudo, todas as formas de
manifestação do demônio existentes nas várias épocas e civilizações. O capítulo I é dedicado ao “surgimento em cena” de Satã na Europa, abrangendo os séculos XII a XV, período em que a noção teológica começa realmente a criar raízes entre as pessoas da Igreja e os leigos do povo sob a forma de assustadoras imagens. Até então, a visão popular (difundida mesmo entre alguns religiosos) era a de um demónio grotesco mas familiar, bastante próximo ao homem e, por isso mesmo, capaz de ser vencido. Muchembled destaca que, no primeiro milénio cristão, o diabo era uma figura difusa, dissolvida no politeísmo popular e, portanto, sem poder de persuasão sobre as massas.
Uma ajuda importante no processo de divulgação da imagem de um diabo mais ameaçador, que castiga os seres humanos com a permissão de Deus, foi, segundo o autor, tomada de empréstimo do modelo narrativo do Oriente próximo: o mito cósmico do combate entre deuses, construindo-se no Ocidente a figura do Satã rebelde que se opõe a Deus e faz da Terra extensão de seu império, dominando os homens. Esta imagem foi importante não apenas para os religiosos, mas também para todos os
governantes, interessados, naquele momento, em constituir uma Europa unificada e forte – renovando os sonhos imperiais herdados da Roma antiga.
Nos capítulos II, III e IV são destacados os séculos XVI e XVII, quando a obsessão pelo demónio atinge as raias do absurdo e as fogueiras de feitiçaria matam pessoas aos milhares. Até meados dos séculos XII e XIII, o sincretismo de crenças convivia, sem maiores problemas, com um cristianismo fraco para expurgar as superstições populares. É a partir do século XVI que ganha força total a imagem do diabo implacável, e as ações humanas passam a estar estritamente ligadas à noção de castigo. Com isso, aumenta o poder simbólico da Igreja e o inferno torna-se algo mais presente na vida dos antigos leigos.
Até mesmo a medicina colabora neste processo ao pregar que o diabo pode se associar à matéria. Com isso, auxiliou a espalhar a crença de que ele é capaz de encarnar em animais e no homem (principalmente nas mulheres, as quais se transformam em sinónimo de pecado e periculosidade), elemento importante para o início da caça às feiticeiras. É o triunfo da demonologia, especialmente no corredor de circulação que leva da Itália ao mar do Norte. Durante este período, o diabo transfere-se, definitivamente, para o meio da humanidade, virando mania a busca por sinais e marcas nas mulheres, as quais comprovariam o envolvimento sexual delas com o demónio.
O capítulo V apresenta o início da decadência do demónio poderoso, motivada pela ascensão de Estados nacionais rivais (pondo fim ao ideal de unificação europeu), pelo progresso da ciência (a qual começa a conhecer melhor o interior do corpo humano) e pelas novas conceções introduzidas no século XVIII, o Século das Luzes. Filósofos, artistas, membros da elite e até mesmo alguns religiosos começam a exprimir dúvidas (ainda tímidas, mas futuramente promissoras) em relação à realidade efetiva de Satã. A decadência irreversível da imagem do diabo assustador vem detalhada no capítulo VI: no século XIX o Mal deixa definitivamente de ser representado como algo externo ao homem, passando a ser algo intimamente unido a ele. Ao invés de
sentir-se culpado e temeroso, o indivíduo deste século acredita ter direito ao prazer, não receando mais o inferno.
Por fim, temos o capítulo VII, o qual demonstra que a antiga crença no diabo continua algo atuante na vida das pessoas – embora de maneira bem diferente do que ocorria no auge da demonologia –, seja através da utilização de demónios (ou seres inspirados neles, como vampiros e criaturas híbridas) em filmes, livros, publicidade e histórias em quadradinhos; da propagação de seitas de adoradores de Satã (e de assassinatos ligados a estas seitas); ou da crença em ETs, horóscopos, telepatia e outros elementos ligados à antiga noção de feitiçaria. O berço desse “culto renovado” ao diabo são os EUA e, em escala menor, a Inglaterra e as terras germânicas, locais onde a imagem do demónio ainda é levada bastante a sério. Já na França, o “senhor
das trevas” não passa de motivo de riso e curiosidade.
Concluindo, Robert Muchembled brinda aqueles que tiverem a paciência e a disposição de ler suas 349 páginas com uma maravilhosa panorâmica das mutações sofridas pelo diabo com o passar das décadas, entrelaçando essas manifestações ao
contexto de suas ocorrências. Uma história do diabo – séculos XVII - XXI traz informações primorosas não apenas para os interessados em Satã, mas para todos aqueles que queiram saber mais a respeito de vertentes literárias como o romantismo, o fantástico, o frenético, o gothic novel inglês; das diferentes formas da medicina encarar o corpo humano e tratar as doenças; sobre pintura e escultura; sobre os processos envolvendo feiticeiros(as) e as provas apresentadas pelos legisladores para se acusá-los(lãs); sobre HQs, publicidade, desenhos animados, Internet... Enfim, a obra é imperdível para os interessados em aprofundar seus conhecimentos sobre a evolução do pensamento humano, sem preconceitos quanto às vias utilizadas para a manifestação deste pensamento, pois, como afirma o autor, “mesmo o indivíduo nutrido de clássicos e de música erudita [...] pode ter lido na infância livrinhos ilustrados para a juventude, ter ouvido rock heavy-metal, ter absorvido uma série de lugares comuns através do cinema ou da televisão” (2001, p. 10).